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Os papéis e as relações de género têm um peso extremamente importante na forma como se construíram e organizaram as sociedades e as comunidades, assim como as dinâmicas que lhes são inerentes, como por exemplo o trabalho, a religião, os costumes, a gestão da vida quotidiana, a educação. Estes e outros domínios regeram a vida das mulheres, principalmente, das que viviam no meio rural.

Incorporar a perspetiva de género na análise do mundo rural, permite conhecê-lo e compreendê-lo melhor, já que identifica as diferenças e as desigualdades existentes entre os papéis dos homens e das mulheres, o poder na esfera pública e privada, os valores presentes, o acesso aos recursos produtivos e a participação nos processos de decisão.

Recorrendo à literatura, encontramos várias classificações representativas dos papéis das mulheres, sendo os mais referenciados conhecidos como “women’s triple role” (papel triplo das mulheres). O primeiro é o papel reprodutivo. Este envolve a reprodução biológica, que consiste em ter filhos e cuidar das crianças pequenas; a reprodução geracional, ligada ao cuidado dos filhos mais velhos; e a reprodução diária, isto é, o trabalho doméstico de suporte àqueles que desempenham tarefas produtivas, incluindo também a manutenção da casa. Em segundo lugar, temos o trabalho produtivo, que diz respeito à produção para consumo doméstico e as atividades agrícolas ou não-agrícolas, que geram rendimento. E, finalmente, o trabalho comunitário, relacionado com os eventos e atividades realizados coletivamente, e também com a providência de cuidados de saúde e acesso a recursos coletivos, como a água, por exemplo.

Se refletirmos bem acerca deste papel, conseguimos perceber que as mulheres desempenham funções fundamentais para o desenvolvimento económico e para a diminuição da pobreza. Num sentido lato, elas representam um forte recurso para a força de trabalho pago e não pago e, para além disso, libertam a mão-de-obra dos homens para outras atividades, uma vez que, contribuem muito significativamente nas tarefas familiares. Num sentido mais restrito, no âmbito do seio familiar, são as responsáveis pela alimentação, saúde, socialização e educação dos seus filhos e de uma comunidade inteira, que fará parte das futuras gerações. As mulheres são, portanto, um incrível agente de mudança.

“O nosso papel enquanto mulheres nestes meios rurais é importantíssimo. A nossa sensibilidade, o nosso cuidado, a nossa ciclicidade. Tudo isto envolve o trabalho em sintonia com a Natureza.” Carolina – Rural Mover, Idanha-a-Nova

Contudo, existem vários obstáculos ao seu reconhecimento. Um deles é a invisibilidade do trabalho doméstico pois, não sendo uma atividade remunerada, é subvalorizado socialmente. A mulher rural contribui, quase que gratuitamente, para a criação de riqueza e bem-estar social, porém esse trabalho não é contabilizado, já que o cuidado da casa, a lavoura, a gestão do dia-a-dia e a educação dos filhos não são considerados um trabalho. Hoje, já começamos a assistir a uma ligeira alteração da noção de trabalho, neste caso do trabalho doméstico, mas não o suficiente para criar uma real mudança na perceção, consciência e comportamento da sociedade.

Quando falamos em trabalho doméstico, estamos também a falar do cuidado com os animais de criação e do trabalho na terra.

“São as mulheres que desempenham tarefas de cultivo (não encontramos homens a desempenhar determinado tipo de tarefas como sementeiras e colheitas quando precisamos de serviços).” Maria do Céu – Rural Mover, Arcos de Valdevez

São mulheres da terra, mas não são donas dela. De acordo com Bina Agarwal (1997), “a posse da terra é uma das vias centrais do acesso ao poder de negociação e, desde a instituição da propriedade privada, a mulher, por ser mulher, foi excluída do direito à sua posse.”

Apesar de não podermos considerar que a realidade da mulher rural atual seja a mesma que há 50 anos, há ainda um longo caminho a percorrer no que respeita aos constrangimentos sentidos por essas, tais como: a sobrecarga de trabalho em várias dimensões, a dificuldade para aceder a recursos, a falta de oportunidades de formação e a falta de reconhecimento social e político.

“Sou uma jovem rural, eu adoro o campo (…), mas temos de conviver com os prós e com os contras da interioridade. Não baixarmos os braços e caminharmos sempre juntos uns com os outros.” Rita Valadas – Rural Mover, Serpa

Para terminar esta reflexão, deixo-vos com uma forte mensagem que explica como o labor na terra é criador de um caminho mais justo e igualitário não só para as mulheres, mas para todos os seres humanos, já que metade da humanidade são mulheres e a outra metade são os filhos delas!

“As mulheres rurais têm muito para nos ensinar sobre como o esforço e o sacrifício nos permitem construir redes que garantam o acesso aos alimentos, a distribuição equitativa dos bens e a possibilidade de que cada ser humano realize as suas aspirações.”

Papa Francisco

Este artigo contou com os contributos de Maria do Céu Bastos, Carolina Figueiredo e Rita Valadas.

Um especial agradecimento às três!

Por: Luísa Ribeiro – Socióloga e Gestora de Projectos na Rural Move.

Referências:

Agarwal, B. (1997). Bargaining and gender relations: within and beyond the household. Feminist Economics, v.3, n.1, pp. 01-51. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/2822720_Bargaining_And_Gender_Relations_Within_And_Beyond_The_Household

European Institute for Gender Equality. (2010). Women’s triple role. Acedido em 23/03/2023. Disponível em:  https://eige.europa.eu/thesaurus/terms/1442

Campisi, T. (2021, 15 de outubro). Mulher rural tem muito a nos ensinar. Vatican News. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2021-10/papa-francisco-mulheres-rurais.html

Florentino de Pinho

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